Já me disseram muitas vezes que tenho «mau feitio». Amigos, familiares,
pessoas com mais intimidade ou confiança…; Às vezes até agradeço. Por vezes têm
razão. Nem sempre.
Há vezes e vezes, alturas e alturas. Todos merecemos o
«benefício da dúvida». Certo é que todos merecemos respeito. Temos que ter pelo
menos uma réstia de confiança na nossa própria evolução, crescimento,
envelhecimento, maturidade, ou lá o que lhe queiram chamar. Talvez auto estima.
Foi num Verão passado, após um dia profissionalmente intenso,
híper-stressante e como habitualmente, quase infernal. No fim de uma tarde, depois
de horas vazias dentro de um carro num trânsito absurdo que nos anula
qualquer vontade ou alegria, nas proximidades do local onde tenho os «tarecos»
arrumados e me deito para dormir, sentei-me num jardim para um momentâneo período
de simples reflexão, «relax», descanso ou só respirar fundo.
Após ter deambulado por um bocado, fui sobressaltado por uma
algazarra canina que era emitida no meu tardoz e que há primeira vista não consegui
apreender. Observei melhor e reparei que na fresta de um portão de garagem, junto
ao chão e saliente para o exterior, estava a cabeça castanha de um pequeno cão.
O portão que era eléctrico, automático e possivelmente sem célula
de segurança para se desligar em caso de perigo, continuava gradualmente a
intensificar a força de fecho; não parava.
Todo o corpo do canino estava no interior e o pobre
debatia-se com a fresta que era cada vez menor e que o impedia de se soltar. Por
ali nem o crânio nem o corpo passariam. Só o seu pescocito impedia o portão de
se fechar totalmente e passar a ser a sua guilhotina. Seriamente entalado,
tinha ali um feio problema.
Corri para o local para tentar ajudar o bicho. Retive de
imediato o portão, colocando umas pedras na fresta e comecei a pensar no que fazer
enquanto tentava acalmar o bicharoco. Nisto aproximaram-se esbaforidos e em
grande correria dois miúdos Luso-africanos, a gritar:
-Preto, Preto! Era o
cãozito deles.
Depois de se aperceberem da situação, aflitos e bem-intencionados
sugeriram que puxássemos o Preto pela cabeça; utilizássemos azeite para tentar que o
corpo escorregasse; sabão, disse um: sabão é melhor… expliquei-lhes: - não, não
era essa a solução.
Bati ao portão, chamei, gritei, os putos idem, o cão gania continuamente…
Senti movimento no interior da garagem e tentei espreitar pela
fresta. Vi pouco, um vulto, pensei que fosse uma criança, talvez assustada ou sem
saber utilizar a chave ou os comandos, ou talvez alguém idoso ou impossibilitado
por qualquer razão física de accionar ou inverter o mecanismo da maquineta; sei
lá eu já o que pensei. O cão entretanto parou de ganir. Talvez pela presença
dos miúdos ou por o portão ter parado de o esganar com as pedras que lhe
apliquei. Espreitei uma segunda vez e lá vislumbrei um par de sapatos com aspecto
masculino, com dimensão para um adulto, de um lado para o outro, em movimento; Percebi
que quem estava no interior, não era uma criança pequena, nem um idoso e pela característica
do seu movimento não me pareceu deficiente físico; era um homem, isso sim. Talvez
fosse demente, ou cego, ou surdo, ou mudo, Esse possível adulto nada fazia e nada
respondia. Enigma!
Decidi chamar os bombeiros e mencionei-o em voz alta; acto
imediato: o portão abriu-se soltando o cão para alegria dos putos e descanso
meu. Surgiu então por detrás de um grande BMW azul-escuro, um senhor, bem
vestido, com fato e gravata e óculos escuros, a quem agradeci a amabilidade de
ter aberto o portão e a quem perguntei o que se tinha passado. Nada respondeu. Perante
o seu insistente silêncio e arrogante indiferença, desisti. Com a certeza que o cão estava bem decidi afastar-me do local.
Após ter dado alguns passos direcionados para a minha vida habitual, ouvi, num quase murmúrio e
daquela que só podia ter sido a voz do dito senhor:
- Da próxima não o voltam a ver, seus escarumbas; no meu
carro não volta a mijar!
-Estaquei! Senti o punho direito a fechar-se, cada vez com
mais força. Tensão e angustia. A respiração alterou-se. Senti novamente aquele tremor que começa no estômago e chega aos calcanhares, ligeiro mas muito
intenso, crescente, que nos faz esquecer tudo. É gradual. É de «perder a cabeça». É um «de
repente» em que a adrenalina «chega às orelhas» e pronto, acabou-se tudo… Enfim, tenho mau feitio…
Não me virei. Respirei fundo. Não penses, pensei. Não penses no animal. Já nem contei até dez ou vinte ou trinta e dois e meio por causa daquela besta. Certifiquei-me
que os putos não tinham ouvido o mesmo que eu. Agi por instinto. Não me virei.
Respirei fundo.
Chamei os dois miúdos bem alto.
-Querem vir comer um gelado?
-Boa! Gritaram.
Acabámos por comer quatro porque os cães também gostam de
gelados.